Em pleno século 18, a Europa vivia a
efervescência do Iluminismo. Filósofos como Voltaire e Diderot
empenhavam-se em lutar pela primazia da razão, abandonando as
superstições, destruindo mitos, e resgatando os antigos ideais de uma
ciência explicativa para o mundo. Sua “bíblia” era a obra máxima do
saber na época: a enciclopédia, que se propunha reunir todos os
conhecimentos construídos pelo ser humano até então. Um movimento deste
gênero construíra, também, seus próprios inimigos: a religião, a visão
teológica, as crenças infundadas, e as lendas que - supunham -
atrapalhavam a visão correta do homem sobre a realidade.
Não foi sem espanto, pois, que
em 1732, boatos provenientes do leste europeu falavam sobre o retorno de
mortos que não apenas falavam e andavam, mas que infestavam os
vilarejos, atacavam homens e animais, sugavam-lhes o sangue até
torná-los doentes e matá-los. Depois de “vistos e reconhecidos”, eles
eram exumados, processados, empalados, decapitados e, finalmente,
queimados. Foi na revista Le Glaneur Hollandais que surgiu, pela
primeira vez, a grafia do termo “vampiro” para designar estas estranhas
criaturas que infestavam uma vasta região que abrangia Hungria, Romênia,
Alemanha, Tcheca e Eslováquia, Bálcãs e chegava mesmo as fronteiras da
Rússia e Polônia. O caso relatado na revista falava de um tal Arnold
Paul que, após sofrer um acidente numa localidade da Sérvia, foi dado
como morto mas teria voltado para atacar outras pessoas, criando um
verdadeira epidemia de vampirismo que se arrastou durante anos. O
notável nesta história é que seu corpo foi examinado por médicos
militares, que teriam constatado que seu corpo não havia se corrompido. O
procedimento utilizado para cuidar do corpo foi transpassar-lhe uma
estaca, que fez o morto gritar e perder sangue - mesmo assim, somente a
extinção de seu corpo pelas chamas deu um fim na terrível criatura.
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Xilogravura sobre Vlad Tepes |
O caso deixou a Europa
iluminista intrigada: que tipo de monstruosidade estaria ocorrendo
naquelas regiões? Seria uma doença? Simples superstição? Atendendo ao
apelo das mentes racionais da época, entra então em cena Dom Calmet, que
talvez tenha sido o primeiro investigador oficial de vampirismo na
história da humanidade.
O primeiro inquérito de vampirismo da história
As lendas sobre vampiros e
criaturas sugadoras de sangue eram comuns na Europa desde a antiguidade.
Com o tempo, contudo, elas foram rareando ou desaparecendo até se
transformarem em mitos ou lendas antigas. Foi surpreendente para esta
época o reaparecimento destas criaturas malignas, e a questão incomodava
sobremaneira as mentes intelectuais do momento.
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Augustin Calmet (1672-1757) |
Dom Calmet foi um
destes investigadores racionalistas daquele momento que resolveu topar a
parada, e realizar um inquérito sério e científico sobre o problema.
Obviamente, ele tinha razões mais profundas para esclarecer o enigma;
Calmet era um clérigo, extremamente preocupado com as questões
teológicas relativas a volta dos “mortos-vivos”, e sua investigação
cumpria um duplo sentido: destruir científica e religiosamente a
possibilidade da existência de vampiros e outras criaturas malignas, de
modo a afirmar os dogmas católicos mas utilizando, para isso, dos
métodos racionalistas iluministas.
Calmet,
inclusive, tinha um bom trânsito entre os iluministas, e havia
aprendido bastante sobre técnicas de pesquisa existentes na época. O
objetivo de seu trabalho seria discutir, inicialmente, as
impossibilidades metafísicas da existência destes seres: depois,
apresentar as provas científicas que caracterizariam estes enganos. O
resultado de suas andanças - que demoraram anos no leste europeu - foram
publicadas, finalmente, em 1751 com o título de Tratado sobre a aparição de espíritos e sobre os vampiros ou os revividos da Hungria, da Morávia, etc.
e causaram choque entre os contemporâneos quando o autor deixava, de
maneira absolutamente inconclusa, o problema da existência dos vampiros,
fazendo a sociedade da época supor que eles realmente poderiam existir...
As descobertas de Calmet
Antoine Calmet foi um erudito religioso conhecido sob o nome de Dom
Augustin Calmet. Nasceu na Lorena em 26 de fevereiro de 1672. Ainda
jovem escolheu tornar-se um padre beneditino da Congregação de
Saint-Vanne et Saint-Hydulphe. Percorreu os diversos mosteiros de sua
ordem, devorando as bibliotecas e redigindo numerosas compilações
históricas. Em 1728, Dom Calmet tornou-se abade na Abadia Saint-Pierre
de Senones, capital do principado de Salm. Foi ali que trabalhou e viveu
até sua morte, em 25 de outubro de 1757, mantendo correspondência com
numerosos cientistas.
O fato de
ser preciso exumar e mutilar os corpos de cristãos para destruir os
vampiros na Europa oriental chamou a atenção da igreja: esta,
primeiramente, convocou um padre chamado Giuseppe Davanzati para
elaborar uma resposta ao problema que, depois de estudar durante cinco
anos os casos de vampirismo, escreveu a tese Dissertazione sopra I
Vampiri publicada em 1744, em que concluía que os vampiros eram fruto da
imaginação e que os corpos não deveriam ser profanados.
Contudo, a tese de Davanzati não
convenceu muita gente, por seu teor eminentemente religioso e não
científico. Foi assim que, logo depois, entra em cena Dom Calmet, um
religioso que também possuía os conhecimentos “científicos” da época, e
que estava estudando os casos de vampiros de modo mais aprofundado e
sério. Em 1746 – após tomar conhecimento das discussões e debates a
respeito dos casos de
vampirismo na Europa Central, como o de Arnold Paul, quando decidiu
examinar a questão à luz da razão e da religião, e de realizar suas
investigações diretas, Calmet publica sua Dissertation sur les
apparitions des anges, des demons et des esprits, et sur les revenans et
vampires de Hongrie, de Bohême, de Moravie et de Silésie,(Dissertação
sobre as aparições de anjos, demônios e espíritos, e sobre os revividos
e vampiros da Hungria, da Boêmia, da Moravia e da Silésia.), uma longa
compilação dos casos de vampirismo ocorridos na Europa Central, a
repercussão de seu trabalho foi tamanha que uma nova edição revista e
ampliada foi publicada em 1751 com modificações no título: Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc.
(ou Tratado sobre as aparições dos espíritos e sobre os vampiros ou os
revividos da Hungria, Moravia, etc., a versão final com o qual
trabalhamos agora).
Dom Calmet era um renomado
estudioso da época, e seus trabalhos eram voltados para a interpretação e
tradução bíblicas, sendo reconhecido pelos outros clérigos como um dos
principais acadêmicos do catolicismo daquele momento. seu interesse nos
casos de vampirismo que estavam ocorrendo na Europa Central e Oriental
lacabaram lhe rendendo repreensões, críticas e até mesmo o escárnio de
outros colegas do clero, dos cientistas e filósofos iluministas. Calmet
afirmava no início de seu livro:“Minha intenção é tratar aqui a questão
dos revividos ou vampiros da Hungria, Moravia, Silésia e Polônia,
arriscando a ser criticado de alguma maneira: os que o crêem verdadeiros
me acusarão de temeridade e presunção, por ter colocado em dúvida, ou
mesmo ter negado sua existência e realidade, outros me repreenderão por
ter empregado meu tempo a tratar desta matéria, que passa por frívola e
inútil no espírito de muitas pessoas de bom senso. De alguma maneira
penso que terei de boa vontade aprofundado uma pergunta, que parece
importante para a religião: porque se o regresso dos vampiros é real,
importa defendê-lo e proválo e, se é ilusório é do interesse da religião
desenganar os que o crêem verdadeiro e destruir um erro que pode ter
muitas conseqüências”. (CALMET, 1751, p.IX-X)
As críticas surgiram pelo
simples fato que, ao fazer sua compilação dos casos de vampirismo com a
intenção de desacreditá-los e de acabar com o que considerava o
sacrilégio de profanar os corpos e as sepulturas para destruir os
suspeitos de serem vampiros, Dom Calmet acabou por endossar as crenças.
Suas conclusões são, em alguns casos, ambíguas e, logo no prefácio da
obra ele deixa claro que não há provas sólidas da existência ou não dos
vampiros e da possibilidade dos mortos voltarem: “[...] Dá-se a estes
revividos o nome de Oupires ou Vampiros, ou seja, sanguessugas, e deles
contam-se particularidades tão singulares, tão detalhadas e cobertas de
circunstâncias tão prováveis e com tantas informações jurídicas que
quase não se pode recusar a crença destes países: que estes revividos
parecem realmente sair dos seus túmulos e produzir os efeitos que são
publicados”. (CALMET, 1751, p.VI)
Nestes relatos dos vários casos
de vampirismo que o abade compilou, encontra-se a descrição de como
identificar um vampiro e as formas de exterminá-lo. Um dos casos
relatados é o ocorrido na “aldeia de Blow, perto da vila de Kadam na
Boêmia” (CALMET, 1751, p. 35), de um pastor que, retornando após a morte
chamava algumas pessoas que morriam “infalivelmente” após oito dias.
Para livrar-se do vampiro atravessaram uma estaca em seu cadáver para
mantê-lo preso a sua sepultura, e como não houve resultado, ele voltou a
levantar zombando do método usado. Para acabar de vez com a
perturbação, ele foi retirado de seu túmulo sendo posto: “[...] sobre um
carro para transportá-lo para fora da aldeia e queimá-lo. O cadáver
gritou furioso, e agitou os pés e as mãos como vivo, e no momento em que
o furaram, soltou muito gritos e derramou sangue muito vermelho e em
grande quantidade. Por último, queimaram-no e esta execução pôs fim aos
aparecimentos e às infestações deste espectro”. (CALMET, 1751, p.35).
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Imagem de um vampiro do séc. XVIII |
Ao longo de toda obra,
Dom Calmet elenca relatos oficiais sobre o vampirismo – jornais,
testemunhos oculares, diários de viagem e críticas feitas por seus
colegas esclarecidos, mas não chegou a nenhuma conclusão decisiva:
“Contudo, não se procede sem alguma forma de justiça: citam-se e
escutam-se os testemunhos, examinam-se as razões, consideram-se os
corpos exumados, para ver se são encontradas as marcas comuns, que fazem
pensar que estes molestam os vivos, como a mobilidade e a flexibilidade
dos membros, a fluidez do sangue, a incorrupção da carne. Se estas
marcas são encontradas, são entregues ao carrasco que queima-os. Algumas
vezes os espectros aparecem ainda durante três ou quatro dias após a
execução. Às vezes prorrogam por seis ou sete semanas o enterro das
pessoas suspeitas. Quando não se corrompem e seus membros permanecem
flexíveis e maleáveis, como se estivessem vivos, então são queimados”.
(CALMET, 1751, p.36).
Sua imprecisão em atestar os casos como superstição ou realidade e a
forma como concluiu que não podia chegar a parecer algum senão ao que
criaturas como os vampiros podiam retornar do túmulo, acendeu ainda mais
a fogueira das discussões sobre o assunto que varreram a Europa
Ocidental, levando inclusive, os filósofos iluministas a discutir o
assunto. Da mesma forma que Dom Calmet, o racionalismo iluminista, ao
tentar refutar estas crenças como superstições do povo ignorante,
conseguiu exatamente o contrário; difundiu os vampiros por toda a Europa
de onde o mito ganhou o mundo.
As incertezas do pesquisador
Na mescla de relatos recolhidos por Calmet, não consta evidência da
realidade ou não dos vampiros, e o próprio Calmet não deixa claras suas
conclusões. Por todo o Tratado suas opiniões são contraditórias. Um
exemplo de suas contradições está em um dos capítulos finais da obra:
“Pode-se tirar vantagem destes exemplos e destes argumentos em prol do
vampirismo, dizendo que os revividos da Hungria, Moravia e Polônia, não
morreram realmente, que vivem nos seus túmulos, embora sem movimento e
sem respiração: seu sangue estando fluído e vermelho, a flexibilidade
dos seus membros, os gritos que soltam quando seu coração é perfurado ou
sua cabeça cortada prova que vive ainda. A principal dificuldade que
tento entender é como saem dos seus túmulos: para lá retornam sem
remexer a terra, que se mantém em seu primeiro estado: como aparecem
vestidos em suas roupas, como vão e vêm, como comem? Se for assim porque
voltar a seus túmulos? Porque não residir entre os vivos? Porque sugar o
sangue seus parentes? Porque infestar e fatigar estas pessoas, que
devem serlhes caras, que não o ofenderam? Se qualquer parte disto é
somente imaginação por parte dos que são molestados, como explicar que
estes vampiros são encontrados em seus túmulos sem corrupção, cheios de
sangue, flexíveis e manejáveis; que se encontram seus pés com lama no
dia seguinte ao que correram assustando as pessoas da vizinhança, que
não se observa nada similar nos outros cadáveres enterrados pelo mesmo
tempo no mesmo cemitério? Como não retornam mais, não incomodam mais,
depois que são queimados ou empalados? Será ainda a imaginação dos vivos
e as suas crenças que se tranqüilizam após estas execuções feitas? Como
que estas cenas renovam-se assim freqüentemente nestes países, que não
são prejudicadas, que a experiência diária em vez destruir faz apenas
aumentar e fortificar?” (CALMET, 1751, p.211-212).
Como pode ser observado no trecho transcrito acima, o próprio Dom Calmet
não sabia no que acreditar. Ele buscava refutar as crenças, mas por
outro lado, deixava perceber que ele mesmo não decidira se acreditava ou
não nos relatos que compilara. Este foi o estopim para toda a discussão
que se seguiu a publicação do Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc.
Os efeitos da dissertação de Dom Calmet
Ao publicar o
Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc.,
Calmet trouxe a discussão para o centro do fenômeno iluminista, e se
transformou num grande bestseller com a ajuda involuntária dos próprios
filósofos iluministas. A obra teve inúmeras publicações, e ficou
conhecida em toda a Europa. Os efeitos da obra foram tão impactantes que
a imperatriz da Áustria, Maria Tereza, decretou uma lei proibindo a
abertura de sepulturas e o estacamento de mortos, tentando coibir o
surto de pânico que se espalhara nos domínios do império Austro-húngaro.
Os filósofos do Iluminismo passaram a discutir o assunto e finalizaram a
questão determinado, arbitrariamente, que era tudo irreal, fantasia da
imaginação daquele povo. A lei também conseguiu atingir seu objetivo, ao
diminuir as violações de corpos e, lentamente, acabar com a histeria
vampírica. Depois de o assunto ser rechaçado e ridicularizado por homens
como Voltaire (que dedica um verbete de seu dicionário filosófico
especialmente à questão), Diderot e Rousseau, as autoridades seculares e
eclesiásticas não viram mais necessidade de desmistificar os vampiros, e
a obra de Calmet foi posta de lado como um “trabalho científico” - mas o
autor não viu isso ocorrer, falecendo em 1757.
A razão, pois, negava seus próprios métodos, em função da afirmação de
um discurso contra as crenças e superstições. Foi exatamente aí, no
entanto, que a literatura popular pôde tirar proveito daquela série de
histórias interessantes relatadas por Calmet, e sobre as quais haviam
tomado conhecimento com toda a discussão que se desenrolara. Durante
quase um século, diversos autores empregaram o vasto material recolhido
por Calmet para criarem contos e histórias fantásticas sobre vampiros,
dando-lhes diversas formas diferentes. O romance Drácula (1897), de Bram
Stoker, seria tão somente a conclusão deste processo, dando uma forma
acabada ao mito do vampiro que conhecemos hoje. Quanto a Dom Calmet,
este passou a história - não como o pesquisador que realmente se
propunha a ser, e sim, como a fonte principal de um dos maiores mitos do
imaginário e da literatura popular mundial.