Dentre os gelados
azulejos brancos, um corpo miúdo e rechonchudo remexia-se agitado na
penumbra. Com seu pouco tempo de vida, tratava-se de uma singela criança
situada defronte à cruel realidade onde residia, severamente arrancada
de seu ninho fraterno muito antes do tempo torná-la sadiamente
circunspeta, fato do qual os duros baques da vida encarregaram-se.
O
pobre pequenino não imagina que horas deviam ser, mas uma centelha de
um duro pressentimento fustigava sua frívola mente de menino: ele não
tardará a chegar. Com os olhinhos imaturos e brilhantes, fitou os seus
semelhantes que dormiam no gelado chão lustroso e bem-polido. Indagava
consigo mesmo mentalmente como aquelas pessoas conseguiam levar um sono
tão calmo em meio àquelas circunstâncias. Seqüestrados e transportados
como mera mercadoria volúvel de saletas escuras à salões espaçosos e
agitados com espantosa freqüência, acabaram por empacar neste infausto
ambiente mórbido e frio, onde dentre intervalos imprevisíveis de tempo
uma das pessoas é levada embora. O horror ocorre quando a grande porta
de madeira é aberta emitindo um ensurdecedor rangido, e lá de fora surge
um ser peculiar com olhos deveras úmidos e atentos que varrem todos ali
presentes com sua rápida e mortífera análise. Alguém é escolhido,
agarrado por suas grotescas e incomuns mãos com inúmeros dedos, para
nunca mais ser visto novamente.
Lembrava-se
tão bem do primeiro ataque como se tivesse ocorrido ontem_ fato para o
qual não há nenhuma objeção, pois há muito deixara de contar as horas.
Sua irmã mais velha havia sido a vítima. Quando a porta fora fechada num
baque, as pessoas lamuriavam-se incansavelmente até, em meio a gritos,
iniciarem um incessante debate. Elas repartiram-se em dois grupos que se
opunham: os que alegavam tratar-se de um caso exclusivo, cujos
argumentos se resumiam a eles sempre terem sido transportados juntos
pelos seqüestradores e não caberia à lógica serem retirados somente
alguns à essa altura, e aqueles que criam avidamente que os raptos se
tornariam rotina. Para a infelicidade de todos, foi-se constatado que o
segundo grupo tinha razão pouco tempo depois, quando a porta novamente
foi aberta e outra pessoa levada. Desde então, todos ali adotaram um
modo de vida receoso, aguardando, submissos, a morte - ou o que quer que
fosse, ninguém sabia o que se passava do outro lado.
A
grande porta então foi aberta, e todos aqueles que dormiam despertaram
assustadíssimos, exclamando suas lamentações; alguns clamavam por Deus e
pronunciavam orações que algum dia fora-lhes ensinada, mas cujo
significado mostrara-se inválido ao longo dessa trajetória de
sofrimento. Quando os olhos úmidos e atentos fitaram a última criança
dentre eles, ela soube que chegara sua vez. Não houve relutância ou
gritos por parte do garoto, que cedera humildemente seu corpo às mãos
que agarravam-no. Deu uma última olhadela nas reles criaturas que
choravam com medo da expectativa que lhes apossava os corações - serem
as próximas – e como fizera tantas outras vezes, constatou que ali não
estava sequer um único membro de sua deteriorada linhagem que acabara
extirpada por aquelas mãos que erguiam-no do chão.
As
mãos fecharam a grande porta com seu característico ruído, mas desta
vez, ele estava do outro lado. Sabia que embarcara sem escolha num
caminho sem volta, mas de fato nunca teve escolha; a vida toda fora uma
marionete destes sádicos raptores, que carregavam por diversos cenários
diferentes aquele pobre rebanho, impedindo que seus próprios pensamentos
e idéias se propagassem, privando até mesmo seus humildes corações de
fatos tão triviais como a decisão de seus próprios destinos.
Ainda
suspenso por aquelas mãos, o garoto contemplou um brilho límpido de luz
branca que provinha de uma lâmpada fincada no teto. Piscou diversas
vezes os olhos até os acostumá-los com a claridade, pois passaram muito
tempo sendo castigados pela submersão à escuridão da saleta, negra como a
mais densa das mortalhas. Quando pode, encarou maravilhado tudo
pertencente ao estranho cômodo onde estava, havia muitos objetos grandes
e desconhecidos para serem avaliados.
Sentiu
os dedos em volta de si cederem e a pressão o aliviou quando fora solto
em uma superfície grande e plana, com quatro pilares que
sustentavam-na. De onde estava, pode ver o corpo daquele ser que tanto o
instigava; uma criatura enorme e rosada, com um chumaço de madeixas
pendendo do topo da cabeça, que abrigava aquele par de olhos que tanto
os amedrontavam. Olhando assim, ele parecia até simpático. Viu-o
manuseando aquelas grandes mãos com muitos dedos, e com elas pegou um
aparato muito singular e o conectou numa tomada. A criatura voltou-se a
ele, e novamente ergueu-o, e o colocou dentro estranho aparato. O garoto
lobrigou abaixo de si um conjunto de lâminas afiadas e perigosas, e
esta visão proporcionou-lhe um tremendo frio na espinha. Tentou correr,
mas a criatura despejou sobre ele uma torrente de água límpida e
cristalina, que tirou seu ar. A última coisa que viu foi um daqueles
muitos dedos ligarem um botão, e então a vida lhe abandonou.
A
criatura tinha uma mistura avermelhada e densa num recipiente, que
cuidadosamente retirou do aparato. Despejou o líquido numa leve taça de
vidro, e acrescentou um pouco de açúcar e duas pedras de gelo. Sorveu um
gole da bebida, e um suspiro de satisfação deixou seus lábios. Ele era
um homem que adorava, afinal, suco de morango.
Conto por: Monique de Pieri
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