O
ano de 2145 vai ficar para a história, especialmente o dia 25 de
outubro. Foi nessa segunda-feira que os homens se revoltaram contra a
criação de seres vivos para abate e alimentação. Currais foram
incendiados, celas e clausuras destruídas e milhares de pessoas nas ruas
atacando consumidores e funcionários da WHR alimentos. O sentimento de
liberdade toma as ruas da América. Pessoas se abraçam e choram
comemorando mais uma vitória do ser humano contra o assassinato para
alimentação. Poderia esse ser o início de uma era, ou simplesmente o fim
do mundo. Mas para entender melhor o motivo de tanta comemoração
precisamos voltar no tempo, em um tempo onde só havia 10 bilhões de
pessoas na Terra.
No ano de 2050 o mundo passou por uma crise
mundial sem precedentes. Não estávamos mais conseguindo alimentar todas
as pessoas do planeta. Milhares passavam fome, guerras na África
dizimaram milhares por água enquanto países como Brasil e China
encabeçavam a lista como os maiores produtores de gado para consumo no
mundo. Acreditava-se que um boi chinês bebia mais água durante um dia de
sua curta vida do que um homem afegão durante uma semana.
Nesse
mesmo ano a ONU resolveu tomar atitudes para diminuir o consumo de carne
e estimular o consumo de alimentos de origem vegetal, que é muito mais
barato e tem um melhor aproveitamento de área e solo. Grandes países
como Estados Unidos e Índia davam benefícios a países que eliminassem ou
diminuíssem a criação de animais para consumo. E por mais absurda que a
idéia possa ser, os grandes produtores de gado aderiram a ação e
reduziam a cada ano 3% do seu rebanho. O objetivo era ter somente 5% da
criação de gado de corte no mundo, o que tornaria o consumo caro e
restrito a uma elite.
Em meados de novembro de 2062 uma fusão
empresarial mudaria a história do mundo. Dois grupos de investidores
americanos aproveitam a “crise do gado”, como foi chamada a histeria
coletiva em busca de carne, para propor um novo modelo de negócios. A
crise chegou ao seu ápice quando os rebanhos bovinos do mundo todo foram
atacados por uma peste que dizimou 90% do que restou dos animais, e os
que sobraram estavam fracos e debilitados. Em dez anos, os bois para
consumo foram extintos. Os outros animais que eram criados em cativeiro
para alimentação como porcos, búfalos, javalis e galinhas foram
dizimados nos anos seguintes.
Durante alguns anos, países como
Tailândia e Camboja descobriram rituais antigos da pequena ilha no
arquipélago de Vanuatu, próximo da Austrália. Esses rituais consistiam
no sacrifício de pessoas para a prática do canibalismo. A grande maioria
reprovava a prática de alguns grupos de tailandeses e cambojanos de
invadir necrotérios em busca de carne para sua alimentação. Com o passar
dos anos, a prática começou a ser tolerada na região, até que foi
descoberta no ocidente pelo empresário Willian Herald Rousseau. Willian
era um americano poderoso, dono de empresas alimentícias espalhadas por
todo o mundo. A maior delas, a WHR alimentos. A crise do gado quase fez
sua empresa falir, até que ele descobriu o enorme potencial da carne
humana. Sim, carne humana para consumo. O empresário conseguiu apoio
parlamentar nos Estados Unidos, e no ano de 2093 conseguiu a aprovação
da comercialização da carne humana, com dezenas de restrições, como
somente o consumo de carne provinda de pessoas que tiveram morte natural
era permitida, por exemplo.
No começo milhares de pessoas se
manifestaram contra a comercialização de carne humana para consumo. Ruas
foram tomadas por militantes e religiosos que eram contra a empresa.
Durante anos, dezenas de ações judiciais foram movidas, até que
finalmente, o povo cansou de lutar e deixou a empresa continuar seu
negócio.
E com o esquecimento do povo, as irregularidades
começaram. Pessoas eram sequestradas e assassinadas para ter sua carne
vendida em supermercados clandestinos, enquanto a WHR alimentos mantinha
o monopólio da venda legalizada de carne humana nos grandes
supermercados. Comer carne de pessoas era um luxo e custava caro.
Dependendo da nacionalidade das pessoas o preço variava e degustações de
carnes importadas viraram moda nos supermercados mais finos da América.
O
golpe final veio no ano de 2121: O filho de Willian, Gregory Herald
Russeau, sucessor de seu pai nos negócios, foi eleito presidente dos
Estados Unidos e criou uma lei para permitir que todas as pessoas
tivessem acesso a carne, que isso não era mais privilégio somente dos
ricos. Com maestria, o sucessor de Willian aprovou uma lei que permitia a
criação de seres humanos em cativeiro para abate e consumo.
Agora,
em pleno século XXII assistíamos pessoas sendo alimentadas com
hormônios de crescimento para serem abatidas quando completavam 18 anos.
Essa foi a única restrição que o congresso americano colocou na lei,
que somente maiores de dezoito anos poderiam ser abatidos.
Isso
não impediu que fazendas de pessoas fossem criadas. Sim, fazendas de
pessoas. Seres humanos ficavam trancafiados em currais por anos,
procriando e vendo seus filhos crescerem. As mulheres davam a luz a pelo
menos quinze filhos durante a vida, antes de serem sacrificadas para
alimentar os rebentos que ela punha no mundo. O leite materno das
enclausuradas era utilizado na fabricação de laticínios, como queijos e
yogurtes. Os homens eram castrados e toda a inseminação era feita de
forma artificial, para garantir a qualidade da carne gerada.
Fazendas
nesse formato garantiam qualidade de vida das pessoas de abate. Algumas
fazendas clandestinas confinavam as pessoas em grades para que não se
movessem durante anos para garantir uma carne com gordura farta e poucos
músculos duros. Alguns recebiam alimentação diretamente pela traqueia,
de uma gosma gordurosa com mais de 3.000 calorias por refeição.
E
não era somente a carne que era aproveitada pela indústria. A pele
humana era utilizada para fazer móveis e até roupas. O primeiro desfile
que apresentou uma jaqueta de couro humano causou muita polêmica no
mercado da moda. A medicina também se beneficiava extraindo órgãos de
pessoas confinadas para tratar doenças dos ricos que tinham um plano de
saúde caro. Até os ossos das pessoas eram utilizados para fertilização
do solo, depois de triturados e tratados, serviam de suporte aos
vegetais que os alimentariam.
Milhares de vegetarianos
continuavam sua batalha, agora pela preservação de seres humanos e pela
libertação das pessoas confinadas. Cartazes espalhados pelas ruas
mostravam frases do tipo "Eu não como meu semelhante".
A WHR
alimentos exibia constantemente na mídia campanhas e pesquisas que
mostravam as pessoas felizes nas celas, sem sentir dor nem saber que
seriam abatidas. Eles mostravam que não havia sofrimento e que era um
processo rápido. Campanhas para alimentação saudável e receitas de como
preparar pratos deliciosos de carne humana estavam expostas em seu site.
Programas de televisão discutiam os melhores temperos e até a melhor
forma de fazer um churrasco com a carne de pessoas.
Mas a criação
de pessoas para abate era lenta e demorada. Era preciso tornar o
processo mais rápido. Foi ai que aconteceu o evento que desencadeou a
revolta do abate.
Uma organização internacional investigou as
empresas da WHR alimentos e descobriu que 30% de suas carnes eram de
pessoas sequestradas para esse fim. Mafiosos eram contratados para
sequestrar, enclausurar e desossar as pessoas. Aqueles supermercados
clandestinos agora vendiam a carne de assassinatos para supermercados
sob a supervisão da WHR alimentos. A opinião pública ficou chocada e foi
para as ruas.
No mundo inteiro, pessoas atacaram as redes de
empresas da WHR alimentos, principalmente ranchos, criadouros e currais
que mantinham pessoas presas para consumo. As pessoas presas não sabiam o
que fazer com aquela liberdade. Elas andavam pelas ruas assustadas,
perdidas e sem entender o motivo da desordem. Ainda eram animais, que
não desenvolveram suas habilidades físicas e de raciocínio. Já as que
foram sequestradas e estavam enclausuradas começaram sua revolta
assassinando os funcionários dos estabelecimentos da WHR alimentos.
Willian, que morreu de infarto em 2100, não viu o fim que sua empresa
estava tendo e nem o de seu filho Gregory, morto em um atentado
terrorista orquestrado por ingleses.
O mundo estava mudando
novamente. Precisávamos cuidar das pessoas que nunca aprenderam a falar
ou a raciocinar como seres humanos. O mundo se voltou contra os Estados
Unidos quando descobriu toda a verdade. A ONU condenou todo e qualquer
consumo de carne, tanto de seres humanos quanto dos poucos animais que
ainda restaram na terra. O mundo precisava recomeçar. O apocalipse zumbi
nunca acontecera, mas o holocausto canibal foi o mais próximo que
chegamos do fim do mundo.
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