Quando Luiz morreu, minha esposa ficou em choque por dias. Talvez eu
não tenha sido tão afetado quanto ela pelo simples fato de que, quando
algo como isto ocorre, alguém tem de manter o equilíbrio. Se todos
desabam, que rumo resta a ser tomado? Ou talvez eu apenas não tenha
assimilado a desgraça, fingindo que tudo continuava como antes.
À noite, enquanto Tatiana permanecia no quarto, sedada, eu me levantava
e ia até o quarto de Luiz, ler histórias para ele dormir. Apesar da
cama vazia, eu tinha a plena sensação de que ele estava ali, rindo das
fábulas, as pálpebras pesadas, lutando contra o sono.
A culpa que Tatiana alimentava não era de todo infundada, Luiz estava
com ela quando tudo ocorreu, cruzavam a rua, o sinal aberto para os
carros, mas Tatiana jura que não havia perigo. Luiz deixou cair a
chupeta, sua mãozinha se soltou da de Tatiana, e ele voltou para
buscá-la.
Nenhum pai deveria passar pelo que passei, ir ao necrotério e ver o
pequeno corpo do filho estraçalhado, o crânio esfacelado, rosto
desfigurado, quase nenhum osso intacto, após ter sido atropelado por um
ônibus. Nenhum!
E tantas memórias surgem naquele momento, entre aqueles segundos em que
a porta se abre e, num relance, já se pode ver o corpo embalado num
saco preto, e torcendo para que, quando o médico abrisse o zíper, fosse o
filho de outro, fosse uma outra criança de cinco anos, dominado por
este egoísmo que nos faz esquecermos de que as outras pessoas também
sofrem. Mas não era o filho de outro, não era um Pedro, nem um João, era
o meu Luiz, quase irreconhecível com o rosto ocultado pela crosta de
sangue coagulado. E as memórias nos afogam, retornando ao primeiro
instante, Tatiana me ligando no celular, choro de alegria na voz, mal
articulando a simples frase “Você vai ser papai!”, o coração batendo
mais forte e, contagiado pela alegria dela, choramos juntos pelo
telefone, e como nos maravilhávamos ao vermos aqueles borrões do
ultra-som que insistiam em dizer que era o coraçãozinho do bebê, o
pintinho dele, ele chupando o dedo, e a angústia do parto, todo aquele
sangue saindo da minha mulher, e aquela criatura cabeçuda, enrugada,
chorando e tremendo, e as recordações das primeiras noites, nós
embasbacados, postados ao lado do berço, admirando o ser que havíamos
concebido, e o primeiro sorriso, as primeiras palavras, o engatinhar, os
primeiros passos. Tudo encerrado ao se abrir o zíper, Luiz morto; não,
não era o filho de outro.
Tatiana foi para a casa da mãe. Eu estava encarregado da triste tarefa
de retirar os pertences de Luiz de casa, dá-los a alguém, jogá-los fora,
qualquer coisa. Mas não consegui, ao abrir a porta, vi Luiz sentado na
cama, pernas balançando, olhinhos brilhando:
— Vamos brincar, papai?
Passei a tarde brincando com Luiz, mesmo sabendo que o corpo dele
estava na casa funerária, sendo preparado para o velório, mesmo sabendo
que Tatiana estava devastada e que adoraria estar comigo agora,
brincando com nosso fiho. Como eu poderia me livrar do quarto de Luiz,
se ele ainda estava lá?
Tranquei o cômodo, todos os móveis dentro.Minha esposa retornou para
casa, ainda sob influência de calmantes. Porém, durante a sedação, ela
resmungava:
— Afonso, você está ouvindo? Você está ouvindo o riso de Luiz?E eu acarinhava os cabelos dela, aquiescendo:
— É claro que sim, Tati, ele está no quarto dele, brincando.
Pois o cadáver de Luiz já havia sido sepultado, mas ele ainda estava
conosco. O que era uma grande alegria para nós, mais do que mero
consolo.
Aos poucos, Tatiana se recuperou e, ao invés de ir sozinho contar
histórias para Luiz, agora Tatiana me acompanhava. Ficávamos até de
madrugada, mesmo após Luiz ter adormecido, sentados na cama dele,
admirando-o, agradecidos pela segunda chance que Deus nos havia dado.
No entanto, numa tarde, ao chegar em casa do trabalho, Tatiana estava
sentada na cozinha, pernas unidas, mãos entrelaçadas, olhar desesperado.
— O que aconteceu? – perguntei.
— Algo não está certo... – Tatiana hesitava – algo não está certo com Luiz.
— Como assim?
Sem muita confiança, ela me pegou pelo braço e me levou até o quarto do
nosso filho. Eu abri a porta, mas o clima alegre, pueril, que costumava
predominar havia desaparecido. O quarto estava na penumbra, um cheiro
de carne apodrecida, e Luiz de pé, voltado para a parede, num dos
cantos.
— Algum problema, Luiz? – gaguejei.
Ele se virou e todo meu corpo começou a tremer; aquele menino não era o
Luiz que eu conhecia, pelo menos não aquele ao qual contei fábulas nas
noites anteriores. O rosto estava magro e ressecado, o olhar fundo, os
braços e pernas contorcidos, o crânio afundado.
— Vocês precisam me deixar ir embora – ele disse.
— Mas você não pode – gemi – Você é o nosso filhinho.
Sem sustentação dos membros fraturados, ele cambaleou até a cama e se
deitou. Fiz menção de me aproximar, para cobri-lo com o lençol, mas ele
me repeliu com um olhar de ódio.
— Não, – ele disse – eu quero ir embora. Meu verdadeiro pai me chama.
— Quem é o seu verdadeiro pai? – indaguei.
Os olhos de Luiz miraram um ponto ao pé da cama, instintivamente, eu
também olhei pra lá e, por um segundo, tive a impressão de que um vulto
ou sombra estava de pé ali. Recuei para a porta.
— Mas não queremos que você vá, meu filho – Tatiana choramingava.
— Eu preciso – e, ao dizer isto, Luiz se virou da cama, insinuando que pretendia dormir.
Depois desta noite, eventos mórbidos passaram a nos atormentar. Até
aquele momento, nosso filhinho nunca havia deixado seu quarto, mas,
agora que ele queria partir, Luiz fazia questão de incomodar nossa
rotina. Certa vez, enquanto eu tomava banho, ouvi um risinho do outro
lado da cortina, e uma silhueta que se aproximava. Abri uma fresta, Luiz
me encarava, tapava a boca, ria.
Noutra vez, Tatiana cozinhava, o som duma gaveta se abrindo. Era Luiz, faca afiada na mão, apontando para minha esposa:
— Posso te ajudar, mamãe?
Mas o pior foi quando eu e Tatiana fazíamos amor, ela sobre mim, olhos
fechados, minhas mãos nos seios dela, e meus pêlos todos se arrepiaram,
senti a presença de alguém e avistei, nas sombras, num canto, o crânio
afundado de Luiz. Brochei e, ao mesmo tempo, tomei uma resolução:
— Tatiana, precisamos nos livrar deste menino!
Naquela mesma noite, fomos ao quarto do Luiz e o informamos:
— Você nos pediu para o deixarmos partir. Pode ir, quando quiser.Mas a resposta do nosso filho foi enigmática:
— Não é tão simples, papai. Vocês têm de me deixar ir.
Não entendemos. Desde a mudança de comportamento dele, tudo que mais
desejávamos era que ele fosse embora, deixasse-nos em paz. Mas ele não
ia, continuava nos pregando sustos, espionando-nos, abrindo gavetas e
portas de armários.
A herança católica de Tatiana falou mais alto, ela correu para a igreja
que não freqüentava há anos e implorou auxílio ao padre. Este veio,
passeou por nosso apartamento, requisitou entrada no quarto de Luiz, por
fim, emitiu seu parecer:
— Não vejo nada de extraordinário aqui, minha filha. Isto não é obra de demônio.
Mas, mesmo assim, sob súplicas de Tatiana, ele concordou em benzer
nossa casa, espargindo água-benta por todos os cômodos.De nada adiantou,
Luiz continuava lá e, agora, zombava de nossos esforços para nos
livrarmos dele. Ele estava muito transformado, pouco recordava aquele
menino doce que havia sido nosso filho, era apenas um ser diabólico, uma
criatura deformada e irônica.Após o padre, realizamos uma sucessão de
profissionais na área da paranormalidade, um médium espírita, um
pai-de-santo, um pastor, mas ninguém conseguia nos ajudar.
Na TV, vimos um programa no qual aparecia uma mulher que dizia falar
com os mortos, conversou ao telefone com telespectadores e revelou
informações impressionantes sobre eles. Esta entrevista nos convenceu a
ligarmos para esta mulher e a chamarmos para nos auxiliar com Luiz.
Ela veio, entrou sozinha no quarto e saiu dele assustadíssima.
— Eu conversei com seu filho – ela nos disse – com o ser que um dia foi
ele, quero dizer. Ele quer partir, mas vocês não deixam. Luiz está
acorrentado a esta casa.
— O que devemos fazer? – eu me desesperava.
— Não é nada simples. Enquanto o corpo e a memória de Luiz estiverem
vivos, ele não partirá. Façam o que eu digo e tenho certeza de que tudo
ficará bem.
Seguindo as indicações da médium, dirigi-me a uma casa de ferragens; em
casa, Tatiana estava incumbida de esvaziar o quarto de Luiz, queimar as
roupas deles e todos os objetos e brinquedos que lhe eram caros.Para
não ser apanhado, esperei anoitecer, pulei o muro do cemitério e,
auxiliado por uma lanterna, encontrei o túmulo de Luiz. Com uma
picareta, derrubei a abertura inferior do túmulo, retirando os tijolos.
Avistei o caixãozinho dele e já podia puxá-lo para fora.
Ainda com a picareta, abri a tampa do caixão, revelando o esverdeado
corpo apodrecido de Luiz, porém, eu estava tão acostumado com este
aspecto dele, pois era assim que ele se manifestava a nós, que nem me
impressionei. Abracei o cadáver e o tirei do esquife, jogando-o sobre um
lençol, no qual o enrolei.
Reinseri o caixão vazio no túmulo, lancei o corpo embrulhado no ombro e
me apressei a deixar o cemitério, arremessando Luiz por sobre o muro,
secundando-o sem demora.
Dirigi por horas, até chegar a uma estrada de terra. Na madrugada,
enveredei-me por uma trilha no matagal. Quando atingi um local que
considerei seguro, estacionei e removi o cadáver do porta-malas.
Este seria o momento mais difícil, seguir passo-a-passo as prescrições
da médium. Utilizando-me duma agulha para couro e um grosso barbante,
costurei a boca de Luiz; em seguida, com um serrote, separei a cabeça do
corpo; por fim, embebi o defunto em querosene e ateei fogo.Levei muito
tempo alimentando as chamas, até que os restos mortais se tornassem
irreconhecíveis. Cavei uma cova com quase um metro de profundidade e
sepultei Luiz.
O sol estava nascendo.
Voltei para casa arrebentado. Cheguei e fui direto para o quarto do
Luiz, completamente vazio, as cortinas abertas, um local bem diferente,
renovado, luminoso. Tomei um banho e fui me deitar, ronquei até, pelo
que Tatiana me contou. Sentíamos bem, um peso havia sido erguido de
nossas costas, prometíamos a nós mesmos que nos esqueceríamos de tudo e,
talvez, um dia, até riríamos do que aconteceu.
Assistíamos televisão no quarto, ouvi um ruído vindo de fora. Tatiana segurou minha mão.
— O que foi isto, Afonso?
— Não sei – levantei-me, fui até a porta e a abri um pouco. Espiei, não
vi nada, mas o ruído continuava, no quarto que havia sido do Luiz.Na
ponta dos pés, caminhei até lá e entrei. O terror me dominou,
absurdamente, incompreensivelmente, o quarto de Luiz estava todo
reconstruído, os móveis, os brinquedos, a decoração, e, sentado no chão,
estava um ser carbonizado, costuras na boca e a cabeça se equilibrando
sobre o pescoço.
A criatura me fitou com olhos ensangüentados e murmurou por entre as costuras:
— Por que você não me deixa ir, papai?
Desde então, somos obrigados a conviver com esta aberração. Mantemos o
quarto sempre fechado, fingimos não percebermos quando Luiz nos espia,
ou passa correndo, derrubando algum objeto da sala. É difícil, mas
somente assim conseguimos manter a sanidade e continuar nossas vidas.
Este é o nosso segredo, meu e de Tatiana, e, às vezes, me angustia a
certeza de que Luiz só sossegará quando eu e ela também estivermos
mortos. Somente assim, ele poderá partir.
Você usou como ideia uma parte do livro cemitério de bichos ne? Ficou bom
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